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Foto do escritorJoka Madruga

Silêncio sofrido

Realmente eu queria que tudo seguisse nesse ritmo de festa e harmonia

Me chamam de onipotente, e eu sou; de onipresente e, eu sou; de onisciente e, também sou. Eu sou aquele que sou! Mas ninguém pergunta como me sinto. Nunca ouço alguém questionar: Deus como você está? Precisa de alguma coisa? O que deseja que eu faça por ti? Certamente pelo fato de eu ser Deus, criador de tudo, conhecedor dos corações, as pessoas pensam que não tenho sentimentos. Atribuem a mim tantos sofrimentos, me culpam das coisas mais absurdas, me ignoram, se revoltam, como se eu fosse a causa de todos os males.


Eu vivia muito sozinho, no meu mundo. Não tinha sentido ser Deus e me autocontemplar. Daí é que o Espírito, meu melhor amigo, me inspirou a criar. Me tornei o artista, revolucionei meu tempo e daí nasceu tudo o que está descrito no livro do Gênesis. Foi maravilhoso e encantador, contemplar agora o melhor de mim, sentir-me realmente útil. E não parei mais. Sempre tem uma novidade que eu partilho com meus filhos. Embora, eles nem sempre estão sensíveis à minha presença, preferem exibir suas conquistas como se fossem deuses. Sempre estão tristes e insatisfeitos.


Quando o planeta estava formado, com tudo de melhor e já se podia ver a harmonia das cores e dos sons, eu fui mais longe. O acabamento teria que ser impecável, a obra por excelência, magistral, única que jamais seria copiada. Inspirado pelo amigo, me sentei à beira de uma fonte e comecei a brincar com a argila. Dediquei os melhores tempos e toda a minha energia para moldar aquela matéria inanimada e dar-lhe um lugar de destaque. Foi o tempo dos tempos, o mais honesto e exigente, o mais árduo e belo até que o coloquei de pé soprando suas narinas e trazendo-o à vida. Foi inesquecível, chorei de prazer, de alegria. Diante de mim estava o ser mais completo e fabuloso, o mais bonito e encantador.


Chamei-o de Adão, deixei que ele passeasse por dias no meu jardim e se sentisse dono de tudo. Mas percebi que não havia brilho em seus olhos, faltava-lhe outro ser que completasse sua existência. Pus-me a refletir no que fazer para aliviar a solidão do homem, afinal eu também me sentira só, tempos antes. Eu poderia ter criado somente ele para que me satisfizesse. Seríamos nós dois nesse gigantesco paraíso e talvez, nos perderíamos, pois eu sou Deus e ele minha criação. Como será que me trataria? Nossa relação seria amigável? Tantas coisas fiquei pensando que decidi consultar meu amigo Espírito.


Adão estava descansando de seu passeio e pegou no sono. Eu fiquei perto olhando para o seu corpo. O que vou fazer para dar-lhe alguém? Numa virada de lado, Adão deixou sua costela saliente e daí veio a luz. Tirei uma de suas costelas e esculpi daquele osso bruto outra maravilha, ímpar, sedutora. Da mesma forma soprei sobre ela o vento da vida. Deixei os dois dormindo e me retirei.


Fui descansar, era sábado. O trabalho árduo da semana foi esgotante e eu precisava me recompor para presenciar a cena dos dois quando despertassem. E assim fiz.


De volta ao jardim, Adão desperta de seu sono e se depara com a outra criatura. Pude perceber ali que aquele olhar distante já havia se transfigurado. Perguntou-me quem era. Apresentei-a como Eva, sua mulher e expliquei o motivo do presente. Eva saiu de seu sono e começou a se situar. Envolta em questionamentos, antes mesmo de dirigir alguma palavra, eu a apresentei ao seu companheiro. Contei toda a história da criação e os deixei.


Agora sim eu estava feliz. Tinha tudo, tinha um mundo belo, criaturas diferentes e dois seres semelhantes a mim, dotados de conhecimento, sensibilidade, afeto. Eu coloquei neles quem eu realmente sou e dei-lhes liberdade para amar. Eu sou apaixonado por meus filhos.


Realmente eu queria que tudo seguisse nesse ritmo de festa e harmonia, que a vida fosse um paraíso e que não houvesse nenhuma degradação, por isso, resolvi presenteá-los com o mais precioso dom: a liberdade. Na verdade, pensei muito se deveria dar esse presente. Porém, se não desse, eles ficariam eternamente passivos e dependentes, seriam como aquele barro manipulado, sem vitalidade. Eu queria que eles sentissem o que eu sinto. Sou livre porque amo e amo livremente. Hoje me questiono se fiz a coisa certa.


A história deles, suas escolhas, a tentação da perversa serpente e o que desencadeou depois, me trouxeram muitas frustrações e decepções. Não que eu me arrependesse de tudo o que criei, jamais. Eu coloquei no mundo o amor do meu coração. Toda a minha bondade eu quis compartilhar. Eu vi que tudo era bom.


Hoje eu contemplo minha obra com muita tristeza. Já escreveram muito sobre meu silêncio nas diversas circunstâncias catastróficas do mundo e ainda me punem. Eu não criei o mal, não desejei a morte, não coloco no homem e na mulher sentimentos depravados e corrompidos, não manipulo e nem castigo. Eu sou amor! O amor não pode destruir. Se eu fosse a razão de todo o mal, eu seria uma mentira. Eu enganaria a mim mesmo? Que sentido tem isso? Se assim fosse, eu poderia ter ficado sozinho, talvez estaria mais confortável. O fato é que o tempo todo sou vítima daqueles que dei a vida. Para mim seria muito fácil exterminar os problemas da humanidade. Poderia fazer apenas com um sopro, mas isso não resolveria nada. Como ficaria a liberdade? Minha relação com eles seria de troca de favores.


Se me lembro bem, dei ao casal a responsabilidade pelos seus atos. Crescei e multiplicai-vos, dominai a terra. É o que vem acontecendo de modo bem diferente do que eu pensei. Daí, as atitudes de cada um colocam em risco a coletividade. Agem por impulso, envenenados por seu egoísmo e me culpam. Em todo momento tento mostrar o caminho certo. Uso de muitos meios e até de pessoas íntegras para abrir os olhos dos cegos. Mandei meu amado Filho Jesus que morreu inocente na cruz. Foi vítima da maldade humana. Sem dúvida foi o momento mais doloroso e eu estava lá, vi tudo. Mas não lhe tirei a escolha. Não fui um carrasco passivo como tantos pensam. Amar é também um sofrimento inquestionável. Enviei tantos outros profetas e não os escutaram. Chego à conclusão de que o problema não sou eu. Eu sou o Deus da vida.


Eu concordo com muitos quando dizem que eu me escondo, fico em silêncio nas provações. Meu silêncio é provocativo. Faço isto para que as pessoas se ouçam e se reestruturem. É muito fácil pedir que eu mude suas vidas sem que eles mesmos acreditem nisso e se esforcem. Meu silêncio, embora sofrido, é essencial para que cada um tome consciência de seu lugar e transforme suas deformadas escolhas em graça. Eu ajudo, dou luz, dou carismas e dons para o bem. Não compactuo com o mal e ainda estendo as mãos para vencerem as ameaças.


As pessoas não imaginam o quanto já sofri e continuo sofrendo. Eu tenho esperança de que a harmonia volte. Aqui onde estou, tem um lugar bem preparado aos que são gratos e são meus amigos. Mas, só posso abrir a porta se cada um seguir a minha voz de pastor.


Então, antes de me julgarem, se coloquem no meu lugar e sintam minha dor por ver meus preciosos frutos se estragando com intrigas, guerras, busca por poder, disputas por autoridade, reforçando o individualismo e edificando caminhos desencontrados com os meus. Ficarei em silêncio, sofrendo e orando para que usem sua inteligência em prol do amor. Venham a mim com o propósito de agradecer e buscar luzes na escuridão. A relação comigo é transparente e baseada na verdade. Sem isso, continuarei calado. Respeite meu sofrimento, faça a tua parte!

Pe. Nilton Cesar Boni, cmf

Missionário Claretiano, sacerdote, formador do Filosofado Claretiano em Belo Horizonte/MG

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